quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A COR DO CRIME



                     —Já acordou, bela adormecida?—Perguntou João Pedro, sem esperar que houvesse resposta, uma vez que seu “interlocutor” estava amarrado e amordaçado.—Tenho que aumentar a “dose”  de éter no nariz do próximo.—Concluiu em pensamento.

                       Ele chegou mais perto e com um arranco retirou o ocupante de seu porta-malas. O homem caiu, pois suas pernas estavam amarradas também. João Pedro o ajudou a se sentar e percebeu que sua roupa estava úmida. Lembrou-se, então, que ouvira do sargento Gonçalves que o “sequestrado” havia comprado picolés e rapidamente olhou o interior de seu porta-malas. Sem muito esforço constatou que todo o forro também estava molhado.

                       —Seu filho-da-puta! Se não fosse te matar, eu iria te dar um tiro no saco!—Disse baixinho, com uma voz serena, porém externando toda a raiva que sentira ao ver seu carro sujo pelos picolés derretidos.—Olha só o que você fez!—Disse, pegando o homem pelo pescoço e quase fazendo com que ele voltasse ao porta-malas.— olha aí, seu desgraçado, veja o que você fez! Só falta ter urinado no meu carro, ai sim, eu te mato!—Concluiu, segurando-o pelo colarinho, fazendo-o ficar de pé...deixando-o ainda mais espantado, ao perceber que sua estatura, seu um metro e setenta e cinco eram bem menos que os mais de um metro e noventa de seu algoz!

                       Feito isso, jogou-o novamente ao chão, deixando-o em desespero ao sacar sua arma! Em seguida João Pedro arrancou a fita adesiva que o amordaçava com a mão direita, enquanto a esquerda pressionava a pistola contra a testa do pobre homem!

                       —Calado...caladinho.—Tentava “acalmá-lo”.

                       O homem ofegava...suas narinas dilatavam-se e contraiam-se, como as narinas daqueles que estão tomados pelo pavor! Sua pele estava branca, como alguém que não tomava banho de sol havia muito tempo, pálida como cera. Seu sangue não dava mostras de que circulava em seu corpo! Seu suor—um suor gelado—molhava sua roupa.

                       —Se você se acalmar, se ficar quieto e calado, vou conversar um pouco com você...mas se der um “pio”, te matarei sem dar uma única palavra. Ok? Você entendeu?—O homem assentiu e, ainda que apavorado, teve lucidez para estranhar o tom sereno das palavras daquele que estava ali para lhe matar.—Posso confiar? Não vai fazer besteira?—Ele meneou a cabeça, assustado, sem saber o que viria pela frente...seu carrasco disse que queria conversar e isso o deixou ainda mais confuso, ainda mais apavorado

                       João Pedro olhou para o crescente e buscou, novamente em seu bolso, o celular. Queria ver as horas. Não que estivesse atrasado para seu segundo compromisso daquela noite...era uma mania sua, um tique nervoso, gostava de ver as horas à cada momento.
                      
                       —Ok, tudo bem. Vou confiar em você! Vamos “conversar”. Mas primeiro vou te passar minhas regras.—Disse, ainda admirando o luar, ainda com a voz serena.—Se eu lhe fizer alguma pergunta, você pode e deve responder...esta é a primeira, a mais importante e a única regra que tenho. E no decorrer da “conversa”, caso eu considere que você possa fazer alguma pergunta, você saberá, eu lhe direi. Ok pra você? Tudo certo?—O homem assentiu outra vez.—Então respire fundo, vamos começar!—Disse, abrindo a porta do motorista e sentando-se no banco, deixando ambas as pernas para fora, com os pés repousados na fina poeira da estrada.

                       João Pedro possuía essa característica. Conversava com seus “trabalhos” por alguns minutos, dependendo da receptividade dessas pessoas, dependendo de como elas encaravam o fato de ainda vivas, já estarem mortas. Ele gostava de revelar às pessoas que executava o porquê morriam, por qual motivo estavam deixando este mundo! Não fazia isso por pensar ser Deus, não passava pela sua cabeça escolher quem deveria morrer, ou quem deveria continuar usufruindo seus dias. Não se sentia um “arregimentador” de almas, a serviço de Deus ou do diabo! Ele só conversava com seus condenados porque isso o reconfortava. Ele sentia-se melhor consigo mesmo após cada diálogo. Imaginava que assim expiava uma parcela de seus crescentes pecados.

                       —De que lua você gosta mais?—Perguntou com os olhos fixos no crescente, em um distante tom de voz...naquele instante nada o comovia ou o incomodava. Aquele era o momento em que o “se” havia desaparecido. João Pedro não se preocupava em pensar “se” um veículo saísse da rodovia e entrasse naquela estradinha, flagrando-o ao executar, literalmente, seu serviço...“se” um morador sem sono aparecesse para importuná-los...“se” seu acompanhante tentasse fugir ou “se” qualquer outra coisa ocorresse. Agora, pensava ele, nada mais o atrapalharia. Era seu ritual. A partir do instante em que retirava sua “vítima” do porta-malas nada mais poderia ser feito...era um caminho sem volta! Aquele era um momento dos dois...nenhum elemento externo poderia atrapalhar...nenhum policial, nenhuma blitz. Réu e algoz, sozinhos, resolveriam a situação!
                      
                          —De qual fase da lua você mais gosta?—Perguntou novamente, uma vez que não obteve resposta, com o mesmo tom de voz e ainda mirando a lua.

                              —Lua cheia! Gosto da lua cheia!—Respondeu em um estalo após a segunda vez em que João Pedro perguntara, como se quisesse recuperar o tempo perdido, uma vez que se lembrara de que seu carrasco lhe dissera...“se eu lhe fizer alguma pergunta você pode e deve responder!”

                       —De qual?—Perguntou outra vez, como se não houvesse compreendido o que seu acompanhante lhe falara, ou como não acreditando na resposta que ouvira.

                              —Gosto da lua cheia!—Respondeu rapidamente, ofegante...com os olhos arregalados.

                    —Você é bem como pensei...você é óbvio...—Disse, desviando seu olhar da lua e voltando-o ao homem sentado no chão, não demonstrando sentimento algum, vendo o quão assustado ele estava. Seus lábios estavam secos, a ponto de já estarem trincados, seus olhos arregalados, que diziam que ele nada estava entendendo, quase saltavam das órbitas e o vai vem frenético das narinas, abrindo e fechando eram as provas irrefutáveis de qual seria o nível de seu terror!—Como eu falei, você é óbvio.—Disse, voltando o olhar para lua.—Com esta resposta, eu sou capaz de te dizer qual a marca de arroz que você come em sua casa, qual o seu refrigerante favorito...sou capaz de acertar a sua marca de cerveja predileta, qual a emissora de TV vocês assistem. E seu carro? Se você fosse pobre, morreria de vontade de comprar um Gol, mesmo que fosse usado, mas deveria ser um Gol. Mas como você possui o vil metal, escolheu um desses três. Um Mercedes, mesmo que dos mais baratos, só pra ostentar, ou um Honda Civic, ou um Toyota Corolla...estou certo, né?—Perguntou, sem emoção, como que conversasse sozinho.—Tá bom...talvez além desses três, você pudesse ter vontade de comprar um Ford Fusion, né? Um carrão americano não é de todo mal! Qual é o seu carro?—Perguntou, ainda olhando para a lua.

                              —Um Civic...um Honda Civic—Respondeu, após engolir à seco.

                       —Bingo! Você é óbvio...e eu odeio pessoas óbvias!—Disse e se levantou, fazendo o homem se espantar ainda mais, deitando-se de lado, tentando esconder seu rosto no pó da estrada. João Pedro, que segurava a arma com a mão esquerda, usou a direita para retirar o carregador, verificou se havia munição, apenas para efeito de terrorismo psicológico e recolocou-o em seu lugar. Nesse momento o homem, em total desespero, urinou nas calças.

                       —Por favor! Por favor! Não me mate!—Suplicou em voz baixa, pois não conseguira gritar, com o rosto completamente coberto de poeira.

                       —Se eu te matasse agora, também seria uma pessoa óbvia, mas eu não sou e não quero ser.—Falou, colocando a arma em cima do carro, sentando-se, novamente com as pernas para fora dele.—Não escolha o que você vai comer, vestir, usar, beber, só porque a maioria também escolheu...—disse em tom professoral—não ter personalidade te diminui, te enfraquece, te deixa frágil...não seja assim. Por que comprar um Mercedes, um Civic, um Corolla, ou um Fusion? Por que tem que ser um alemão ou um japonês, no máximo um americano? Não seja assim...existem ótimos sedãs coreanos...faça como eu—disse dando dois tapinhas no volante de seu carro— numa próxima vida, siga meus conselhos...

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